A psicolingüista argentina desvendou os
mecanismos pelos quais as crianças aprendem a ler e escrever, o que levou os
educadores a reverem radicalmente seus métodos
Foto: Daniel Aratangy
Os livros de Emilia Ferreiro
chegaram aqui nos anos 80 e logo alcançaram grande repercussão
Frases de Emilia Ferreiro:
“Quem tem muito pouco, ou quase nada, merece que a escola lhe abra horizontes”
“Um dos maiores danos que se pode causar a uma criança é levá-la a perder a
confiança na sua própria capacidade de pensar”
Emilia Ferreiro nasceu na Argentina em 1936. Doutorou-se na Universidade de
Genebra, sob orientação do biólogo Jean Piaget, cujo trabalho de epistemologia
genética (uma teoria do conhecimento centrada no desenvolvimento natural da
criança) ela continuou, estudando um campo que o mestre não havia explorado: a
escrita. A partir de 1974, Emilia desenvolveu na Universidade de Buenos Aires
uma série de experimentos com crianças que deu origem às conclusões
apresentadas em Psicogênese da Língua Escrita, assinado em parceria com a
pedagoga espanhola Ana Teberosky e publicado em 1979. Emilia é hoje professora
titular do Centro de Investigação e Estudos Avançados do Instituto Politécnico
Nacional, da Cidade do México, onde mora. Além da atividade de professora – que
exerce também viajando pelo mundo, incluindo freqüentes visitas ao Brasil –, a
psicolingüista está à frente do site
www.chicosyescritores.org, em que estudantes escrevem em
parceria com autores consagrados e publicam os próprios textos.
Nenhum nome teve mais influência sobre a educação brasileira nos últimos 20
anos do que o da psicolingüista argentina Emilia Ferreiro. A divulgação de seus
livros no Brasil, a partir de meados dos anos 1980, causou um grande impacto
sobre a concepção que se tinha do processo de alfabetização, influenciando as
próprias normas do governo para a área, expressas nos Parâmetros Curriculares
Nacionais. As obras de Emilia – Psicogênese da Língua Escrita é a mais
importante – não apresentam nenhum método pedagógico, mas revelam os processos
de aprendizado das crianças, levando a conclusões que puseram em questão os
métodos tradicionais de ensino da leitura e da escrita. “A história da
alfabetização pode ser dividida em antes e depois de Emilia Ferreiro”, diz a
educadora Telma Weisz, que foi aluna da psicolingüista.
Emilia Ferreiro se tornou uma espécie de referência para o ensino brasileiro e
seu nome passou a ser ligado ao construtivismo, campo de estudo inaugurado
pelas descobertas a que chegou o biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) na
investigação dos processos de aquisição e elaboração de conhecimento pela
criança – ou seja, de que modo ela aprende. As pesquisas de Emilia Ferreiro,
que estudou e trabalhou com Piaget, concentram o foco nos mecanismos cognitivos
relacionados à leitura e à escrita. De maneira equivocada, muitos consideram o
construtivismo um método.
Tanto as descobertas de Piaget como as de Emilia levam à conclusão de que as
crianças têm um papel ativo no aprendizado. Elas constroem o próprio
conhecimento – daí a palavra construtivismo. A principal implicação dessa
conclusão para a prática escolar é transferir o foco da escola – e da
alfabetização em particular – do conteúdo ensinado para o sujeito que aprende,
ou seja, o aluno. “Até então, os educadores só se preocupavam com a
aprendizagem quando a criança parecia não aprender”, diz Telma Weisz. “Emilia
Ferreiro inverteu essa ótica com resultados surpreendentes.”
Idéias que o Brasil adotou
As pesquisas de Emilia Ferreiro e o termo construtivismo começaram a ser
divulgados no Brasil no início da década de 1980. As informações chegaram
primeiro ao ambiente de congressos e simpósios de educadores. O livro-chave de
Emilia, Psicogênese da Língua Escrita, saiu em edição brasileira em 1984. As
descobertas que ele apresenta tornaram-se assunto obrigatório nos meios
pedagógicos e se espalharam pelo Brasil com rapidez, a ponto de a própria
autora manifestar sua preocupação quanto à forma como o construtivismo estava
sendo encarado e transposto para a sala de aula. Mas o construtivismo mostrou
sua influência duradoura ao ser adotado pelas políticas oficiais de vários
estados brasileiros. Uma das experiências mais abrangentes se deu no Rio Grande
do Sul, onde a Secretaria Estadual de Educação criou um Laboratório de
Alfabetização inspirado nas descobertas de Emilia Ferreiro. Hoje, o
construtivismo é a fonte da qual derivam várias das diretrizes oficiais do
Ministério da Educação. Segundo afirma a educadora Telma Weisz na apresentação
de uma das reedições de Psicogênese da Língua Escrita, "a mudança da
compreensão do processo pelo qual se aprende a ler e a escrever afetou todo o
ensino da língua", produzindo "experimentação pedagógica suficiente para
construir, a partir dela, uma didática".
Etapas de aprendizado
Segundo Emilia, a construção do conhecimento da leitura e da escrita tem uma
lógica individual, embora aberta à interação social, na escola ou fora dela. No
processo, a criança passa por etapas, com avanços e recuos, até se apossar do
código lingüístico e dominá-lo. O tempo necessário para o aluno transpor cada
uma das etapas é muito variável. Duas das conseqüências mais importantes do
construtivismo para a prática de sala de aula são respeitar a evolução de cada
criança e compreender que um desempenho mais vagaroso não significa que ela
seja menos inteligente ou dedicada do que as demais. Outra noção que se torna
importante para o professor é que o aprendizado não é provocado pela escola,
mas pela própria mente das crianças e, portanto, elas já chegam a seu primeiro
dia de aula com uma bagagem de conhecimentos. “Emilia mostrou que a construção
do conhecimento se dá por seqüências de hipóteses”, diz Telma Weisz.
De acordo com a teoria exposta em Psicogênese da Língua Escrita, toda criança
passa por quatro fases até que esteja alfabetizada:
• pré-silábica: não consegue relacionar as letras com os sons da língua falada;
• silábica: interpreta a letra a sua maneira, atribuindo valor de sílaba a cada
uma;
• silábico-alfabética: mistura a lógica da fase anterior com a identificação de
algumas sílabas;
• alfabética: domina, enfim, o valor das letras e sílabas.
O princípio de que o processo de conhecimento por parte da criança deve ser
gradual corresponde aos mecanismos deduzidos por Piaget, segundo os quais cada
salto cognitivo depende de uma assimilação e de uma reacomodarão dos esquemas
internos, que necessariamente levam tempo. É por utilizar esses esquemas
internos, e não simplesmente repetir o que ouvem, que as crianças interpretam o
ensino recebido. No caso da alfabetização, isso implica uma transformação da
escrita convencional dos adultos. Para o construtivismo, nada mais revelador do
funcionamento da mente de um aluno do que seus supostos erros, porque
evidenciam como ele “releu” o conteúdo aprendido. O que as crianças aprendem
não coincide com aquilo que lhes foi ensinado.